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O ESPÍRITO TUTELAR

Foto do escritor: Fernando LiguoriFernando Liguori


Como um ocultista com trinta anos de estudo e prática em diversos sistemas mágicos modernos, tendo me decepcionado profundamente com os caminhos pelos quais a tradição oculta moderna tomaram, diferente de muitos magistas com experiência semelhante, eu optei por não tornar-me diretor de nenhuma escola de iniciação, colegiado, agremiação ou associação nos moldes das ordens ocultistas modernas após o encerramento das atividade do Colegiado da Luz Hermética.[1] Há muito tempo eu deixei de acreditar nas inúmeras ordens iniciáticas da modernidade e passei a zelar pelo ensino tradicional da Arte dos Sábios através de um contato íntimo ou relação de mestre e discípulo. Tradicionalmente, desde os primórdios da magia, a Arte dos Sábios, seus segredos e mistérios, tem sido transmitida através de uma linha de sucessão de magos e feiticeiros. Magia aprende-se dentro do círculo mágico, feitiçaria aprende-se sujando as mãos com sangue e gordura de animais imolados. Quando o estudante está pronto para aprender com um mago experiente, ele busca um professor que possa lhe ensinar os arcanos da Arte dos Sábios pessoalmente. O estudante aprende magia vendo seu tutor espiritual praticando, observando seus procedimentos, invocações e consagrações, conjurações e pactos. Anos e anos nos enfadonhos graus de papel não substituem a verdadeira relação entre mestre e discípulo na transmissão da tradição da magia.


A expectativa do mago na Antiguidade era primeiro preparar-se através do estudo, depois encontrar um tutor para lhe ensinar o arcano da magia. De posse deste conhecimento, conjurar um espírito assistente para lhe dotar com sabedoria oculta e auxílio tangível na modificação de sua realidade. Essa é a fórmula universal presente em inúmeras tradições e cultos de mistérios desde o passado mais remoto até os dias de hoje e que foi imortalizada nas histórias míticas de São Cipriano e Fausto, nos feitos taumatúrgicos de Salomão e Simão o Mago, bem como na versão moderna do Conhecimento & Conversação com o Sagrado Anjo Guardião. E diferente do que pensam ou postulam os magos da modernidade, este arcano secreto da tradição da magia foi irremediavelmente perdido nas ordens modernas como os diversos grupos rosacrucianos-iluministas, entre eles os thelemitas e os maçons, por exemplo.


Por outro lado, as tradições de Cabalá Crioula africanas e àquelas que nasceram da diáspora não só preservaram o arcano mágico, como o desenvolveram para muito além do conhecimento transmitido pelas ordens iniciáticas modernas do Ocidente: Iṣéṣé Làgbà, Ifá, Candomblé, Catimbó e Quimbanda são tradições que transmitem a fórmula mágica do conhecimento e conversação com espírito assistente de maneira genuína dentro de codificações iniciáticas compreendidas apenas por seus adeptos iniciados. Todo ocultista ou hermetista deveria se ater com cuidado e atenção a estas tradições, pois elas irão fornecer de verdade tudo àquilo que as ordens modernas dizem oferecer, mas que em verdade não o fazem. A Quimbanda em especial é a que mais se aproxima da busca hermética tradicional, visto ela ter sido profundamente influenciada pela tradição oculta da magia, como ficará esclarecido nesse volume.


Hoje eu sou um Mestre de Quimbanda Nàgô e Quimbanda Mussurumin, sacerdote do Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera Negra e Pombagira Dama da Noite da Cova de Cipriano Feiticeiro, nome pelo qual nossa família tradicional de Quimbanda atende. É dentro deste contexto de associação que eu recebo alunos desejosos por se desenvolver na Arte dos Sábios.


Por quase vinte anos eu fui instrutor da Astrum Argentum, tendo publicado inúmeros livros sobre a filosofia de thelema e sua prática místico-psiúrgica. Em 2017 me retirei completamente do trabalho externo da Astrum Argentum.


O Conhecimento & Conversação com o Espírito Assistente tem sido foco de meu aprofundamento nos últimos vinte anos e desse aprofundamento nasceram duas obras: Corrente 93 e Daemonium (Vol. I). No primeiro volume eu me debrucei sobre i. a natureza do espírito assistente (daimon pessoal, espírito familiar, Sagrado Anjo Guardião, espírito tutelar ou servidor etc.); ii. o conhecimento & conversação com o espírito assistente. E isso segue uma fórmula de iniciação: primeiro tomamos conhecimento da natureza do espírito assistente, nos tornamos capazes de conhecê-lo; após esse conhecimento de sua natureza é que empreendemos esforços para nos comunicar e interagir com ele efetivamente.


Este tem sido o eixo ao redor do qual se estruturou a tradição da magia como a conhecemos no Ocidente; a busca pelo conhecimento e conversação com o espírito assistente e através dos poderes dele operar o milagre da magia.


Nós encontramos referências acerca de auxiliadores espirituais em quase todas as culturas do Ocidente ao Oriente, nas mitologias e nos contos populares. Durante a Idade Média o tema ganhou fôlego nas perseguições católicas e protestantes contra as bruxas na Europa, acusadas de pactuarem e se comunicarem com o Diabo que as aparecia como um espírito tutelar, o diabo pessoal que as dotava de poderes miraculosos de magia. O diabo pessoal das bruxas era de natureza aérea e agia como um agente de comunicação, um mensageiro entre elas e os espíritos familiares que conjuravam a disposição. Não tardou para aparecerem relatos de bruxas acompanhadas de espíritos familiares na forma de gatos, ratos, corujas, cães e insetos. Na alta temperatura das fogueiras de bruxas qualquer mulher que possuísse um animal desses podia ser acusada como tal. Uma quantidade grande dessas histórias é puro folclore, muitas vezes para assustar e condenar a prática de feitiçaria e religiosidade pagã, no entanto, elas vêm carregadas com um conhecimento arcano, quase que subliminar nos contos folclóricos da magia popular europeia: a ajuda espiritual através de um agente sobrenatural.


Durante a Idade Média curandeiros e bruxas foram acusados de comunicação com espíritos; as bruxas eram imputadas o contato com demônios, encantados da natureza, ninfas etc. Dependendo das inclinações naturais dos bruxos, magos ou feiticeiros, seus espíritos assistentes podem ser de natureza maligna, benigna ou ambos. Seja como for, o papel do espírito assistente é auxiliar o mago em sua arte, guiando e protegendo sua jornada. Existem contos de magia popular europeia relatando a ação dos espíritos assistentes e os descrevendo como animais diversos, cães, gatos, aves etc. enviados a longas distâncias pela bruxa para coletarem informações e espionarem seus desafetos pessoais ou dos clientes. E é interessante notar como este tipo de conto europeu medieval além de encontrar expressão e reflexo na feitiçaria tradicional brasileira, também o faz na tradição xamânica quando o animal de poder do xamã é enviado para espionar ou resgatar alguma parte da alma de um cliente perdida nos planos espirituais.


Espíritos assistentes familiares são distintos de espíritos assistentes tutelares. Os familiares e servidores são aliados mágicos, membros do clã espiritual ou egrégora pessoal. Os espíritos tutelares agem como guias e instrutores espirituais, encaminhadores do destino dos magos e feiticeiros. No xamânismo o espírito tutelar aparece em um momento de intensa crise espiritual na forma de doença e estado de quase morte. Tanto o conhecimento e conversação com o espírito tutelar no xamanismo quanto à própria iniciação xamânica ocorre nesse limiar entre vida e morte. Na Quimbanda o espírito assistente trata-se de um Exu, a alma deificada de um morto ou um encantado da natureza. Nessa tradição de feitiçaria brasileira o Exu atua como um instrutor espiritual e a fonte por trás do poder de magia do kimbanda iniciado.


Como vimos no volume anterior, o conhecimento e conversação com o espírito tutelar é uma experiência mágica universal, presente em inúmeras culturas mágico-espirituais. Trata-se de uma experiência de cunho íntimo e que pode ocorrer de maneiras distintas com quase todos os magos, bruxos e feiticeiros. Nos contos e relatos de magia popular europeia o contato de bruxas e curandeiros com seus espíritos assistentes são descritos de formas diferentes e em ocasiões distintas:

 

  1. O espírito assistente pode aparecer ao feiticeiro em meio às atividades cotidianas da vida secular, inesperadamente.

  2. O familiar/servidor/tutelar pode ser transferido de um feiticeiro a outro no momento da morte, usualmente um filho mágico, quer dizer, um discípulo ou membro da família.

  3. O espírito assistente pode aparecer ao feiticeiro em momentos de intensa crise espiritual e secular.[2]

  4. O espírito assistente pode aparecer ao feiticeiro através de intensa ascese, isolamento e disciplinas espirituais de mortificação como o sistema delineado em no livro A Magia Sagrada de Abramelin.

 

Nós podemos incluir a dança, o transe, o silêncio, a reflexão e a meditação como meios efetivos de contatar o espírito assistente. Na Idade Média, bruxas clamavam a Satã, o diabo pessoal, para contatar seus espíritos assistentes. Outras o faziam através da leitura de livros ou eles saltavam aos olhos delas inesperadamente. Não existe, efetivamente, uma fórmula de bolo para o conhecimento e conversação com o espírito assistente. Para alguns sensitivos ele pode aparecer logo no início da jornada; outros têm o buscado por toda a vida. O conhecimento e a conversação, termo utilizado para conexão total com o espírito assistente, ocorre no curso do tempo, dentro de uma relação íntima e familiar com ele. Ser assistido por um espírito assistente e conjurar diversos espíritos ancestrais, familiares e servidores, é construir uma equipe espiritual, uma família que deve ser cuidada com carinho e comprometimento. Constituir uma família espiritual ao seu redor tem sido uma das tarefas tradicionais de um feiticeiro porque isso constitui a fonte das maiores proezas mágicas realizadas e relembradas na história da magia.


Não é muito diferente de se ter animais de estimação. Eles precisam de cuidados diários, alimentação, saúde, limpeza. Não é muito diferente também de conviver em família ou grupo: temos de ser cordiais e educados, cumprimentar todos os dias, bom dia, boa noite, estou saíndo, cheguei etc. Todo o cuidado que temos com nossas relações pessoais será o mesmo cuidado que teremos com nossa família de espíritos, a egrégora pessoal ou, como se diz na Quimbanda, a banda. Quando dizemos saravá a banda de fato cumprimentamos toda egrégora pessoal de um feiticeiro, os espíritos que o acompanham na Quimbanda.


Como demonstrei no primeiro volume, conectar-se com um espírito assistente constituía a obrigação fundamental de um feiticeiro, mago ou teurgo, sem a qual nenhum adepto podia de verdade considerar-se feiticeiro, mago ou teurgo.


Culturas diversas incentivam o inicio da jornada espiritual através do culto aos ancestrais, porque são eles as raízes de todo crescimento verdadeiramente espiritual. Nós somos como árvores. Os galhos da árvore são os setores de nossas vidas e os frutos, o resultado de nossa vida nesses setores. As pessoas não costumam reconhecer que a maioria de nossos problemas na vida têm relações ou conexões com a nossa ancestralidade. Então quando começamos a jornada espiritual através dos ancestrais, o que estamos fazendo é cultivar as raízes saudáveis de nossa existência material. Ademais, o culto aos ancestrais se trata de uma prática que depende totalmente da crença no contato com espíritos desencarnados. Por conta disso, através do culto aos ancestrais se aprende mais rapidamente a interagir com espíritos tutelares, familiares e servidores diversos. Além do valor místico e terapêutico, pois o contato com ancestrais familiares auxilia na cura de profundas mazelas psíquicas conectadas a eles, existe o valor mágico, pois os ancestrais familiares se tornam a primeira linha de defesa espiritual do feiticeiro e agentes de magia também.


O conhecimento e conversação com o espírito assistente deve, portanto, ser construído com o tempo, dedicação e comprometimento para com ele. É como uma amizade que para dar frutos vistosos precisa amadurecer. É como um relacionamento que para criar raízes profundas precisa de uma interação e conexão em todas as áreas.


Táta Nganga Kamuxinzela

Cova de Cipriano feiticeiro



NOTAS:


[1] O Colegiado da Luz Hermética foi uma ordem de estudo e prática da teurgia com foco na escola de Jâmblico.

[2] Na Europa medieval, problemas com falta de dinheiro, doenças, perda/luto etc. eram demandas da maior parte da população. O espírito tutelar aparecia nestes momentos de crise para proporcionar uma saída para superar estes obstáculos e dificuldades. Um conforto espiritual oferecido e compartilhado por meio de um pacto mágico.


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